terça-feira, 12 de outubro de 2010

Aforismos e divagações sobre o amor noturno


Tarde da noite (nem tão tarde assim, ok!), a criança voodoo acorda. Dormiu cedo demais e, nesse caso, não solucionou em nada sua ânsia.
Se levanta ainda meio perdido, um misto de desorientação e preguiça.

Nesse mundo de concreto, capital e movimentações sorrateiras, a criança voodoo lembra:

- Putz, hj é dia das crianças!

Sorri de novo em frente ao espelho, com aquela cara de ''grande coisa''. Acha graça do pensamento, balançando a cabeça como que meio desaprovando e achando hilário tal colocação ao mesmo tempo.

Entre um filme e outro, uma noite e outra, segue o presente.

'Um café Vanilla até ajudaria á esquentar nessa noite fria', pensa. Sai de casa, na névoa da madrugada; boina, casaco de lã, calça cinza. Elegante, mas despreocupado ao mesmo tempo. Isso traz o charme.

Andando em meio á madrugada, na névoa densa e condensada,quase se podia cortar fatias de solidão. Lembra do cigarro no bolso.

Pega, meio que tentando esconder os dedos do frio. Para. Olha para os lados. Acende.
O barulho que o cigarro faz ao acender, o primeiro contato da chama com o tabaco, só quem fuma e é atencioso consegue desfrutar.

- E nem daria pra não perceber...

O silêncio metálico dos faróis ao trocar de cor,autorizando o vento á passar pelos cruzamentos outrora abarrotados, o som das luzes de mercúrio, se esforçando em sobreviver mediante tal noite -convidativa para um descanso-, toda a mística noturna liberta e encobrindo tudo e todos, até onde os olhos podem enxergar...

Crianças voodoo amam a noite. Se encantam por ela. Com ela. Através dela. Como uma criança com um brinquedo novo. Cada nova noite aparenta um novo brinquedo. E é.

Não essas noites de 'balada'. Zoação. Pegação.

Nada disso.

Isso no máximo é uma tentativa infame e descabida de se esconder do dia. Simplesmente isso.

A noite que falo, é a das décadas de 30,40,50. A noite cantada por Cartola. A noite dos homens. Sábios malandros. Miles Davis tocando seu blue, que todos classificam como jaizz. Não, você não leu errado e muito menos errei: ja-i-zz.

A noite que abriga as maiores alegrias, as maiores dores. A noite que impulsiona a memória melancólica, eufórica. A noite que simplesmente chega e se instala, abrindo os braços á todos seus filhos. E como uma criança, também encanta, fascina, enfeitiça e amedronta.

Como o nosso pequeno notável Taylor McKinney e seu trabalho de Estudos Sociais, a corrente do 'passe pra frente'.

- Ahhhhh noite...se soubesses...O quanto encanta, engana, magoa. O quanto iludes e revelas...o quanto chorei no teu silêncio.

- Meu caso com você é de outras vidas. E outras noites. Mas... não! não se enciúme por favor... Não se sinta trocada pelas passadas. Muitas tiveram a oportunidade de ficar recostadas neste peito cá. Poucas o tiveram por inteiro. Menos ainda,o entenderam de fato. Extintas e minguadas, já passadas e sepultadas, o adentraram.

- Tua morada, minha princesa negra, se faz dentro. Eterna. Ao lado do fragmento de Deus que carrego, assim como os meus iguais.

- Ah...noite, noite, noite... O que seria de mim sem tú? Ou vós? Já que és plena e imensa. Diversa. Controversa. Densa.

A criança voodoo esperou o cigarro acabar, contemplando o momento. Pensou em comprar pães. Tomar café. Ler um livro. Mas estava inebriado pelo odor das damas, que só desabrocham na escuridão. O cheiro que só a noite traz. O cheiro do calado. Pelo silêncio, quase mórbido, que estava submerso.

Rompeu o silêncio com um breve assobio, improvisando sobre uma frase de 'byebye blackbird'. E seguiu caminhando sem pressa. Sem a cabeça pesada. Sem pretensão nenhuma...

Sumiu na névoa... junto com seus guias, orixás, guardiões. O espírito de Seu Zé, referência e boêmio velho, conhecido nas esquinas e terreiros. Levou junto o amor que já não cabia mais em seu peito.

Ao longe, só restou o eco. Este, mais apaixonado pela noite que a criança voodoo, se esforçou ao máximo para permanecer e tentar possuí-la de todos os modos.
Como todos os outros que tentaram a mesma coisa, falhou.

O boêmio sabe que não pode possuí-la, por isso só a acompanha.
Essa é a sabedoria não ensinada nas escolas do dia, para cortejar damas impossíveis.

Na escola do dia não.
Mas quando a noite cai, tudo se torna possível novamente.

5 comentários:

  1. Putz! Cara.. Chorei aqui (muito). E depois cantei blackbird fly.... As crianças voodoo se identificam. Só elas sabem. Obrigada por postar. Beijo!

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  2. Tamo junto Nan. Cheguei a uma conclusão: Nós somos feitos das mesmas coisas que são feitas os sonhos...

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  3. Quem escreveu??? Fantastico! Nostalgico, mas fantastico!

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  4. Como quem escreveu? hahahaha...
    Eu né Mi... pô... rs*

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  5. Lindo,crianças voodo,brincam na sombra protegidas por seu Zé,Miles Davis falou¨Tudo que eu toco é blues.essa criança ganhou um C.D. do Muddy Walters do dia das crianças.Quando a noite
    chega a verdade acontece..a verdade......

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